Bruxas
30/06/2013 17:20
Bruxaria Medieval Do Paganismo à Heresia
A propagação de conhecimentos ocultos levou ao fortalecimento
da figura das bruxas, algo que era, ao mesmo tempo, respeitado
e temido como uma herança de tempos antigos. Mesmo assim sua
associação com o profano e o proibido levou a Igreja Católica a
tomar medidas para combater mais esse mal na terra.
Nietzsche (1844-1900), em seu O Livro do Filósofo, refere-se ao
período da seguinte maneira: "A história e as ciências humanas
foram necessárias contra a Idade Média: o saber contra a crença..." .
O estudo do período medieval se inicia, deste modo, imerso
em errôneas pressuposições. Um engano grosseiro que,
aos poucos, se desfaz. Eventos importantes ocorreram.
Um deles foi a solidificação do cristianismo, que criou Instituições e Dogmas,
permitindo que nos refiramos a esta institucionalização como Igreja.
Olhar para a Idade Média como algo de importância própria é o mínimo
para se desfazer este mal-entendido; mas falemos de bruxaria. E de bruxas.
Como os registros históricos, principalmente aqueles
vinculados à Inquisição e ao Santo Ofício, nos dão conta de que em cada
quatro casos envolvendo bruxaria três eram com mulheres -
outras fontes indicam números ainda mais insignificantes de homens -
focaremos aqui o aspecto feminino do mito. As novas cores com
que foram pintadas neste período, de certa maneira, tangencia
como o papel da mulher também se modificou. Começaremos por
uma visão panorâmica do assunto.
Origem do Termo O termo "bruxa" se perde no tempo, remontando
facilmente a épocas pré-romanas. Em inglês, a palavra witch pode
significar tanto bruxa, quanto feiticeira; provavelmente tem sua
origem nos termos anglo-saxões "wissen", (conhecimento) e
"wikken" (adivinhação). Vinculando, portanto, as bruxas a atividades
adivinha tórias e àquelas relacionadas com o acúmulo de conhecimento,
como o trato com as ervas e raízes.
Neste contexto, podemos traçar o perfil das bruxas,
de forma geral, como personalidades femininas que
estavam envolvidas em práticas "medicinais" (chás,
beberagens e uma infinidade de outros artifícios para curar os enfermos)
e vaticínios (profecias). Coisas que nas sociedades antigas, de certo modo
também nas atuais, em nada se diferenciavam entre si, sendo ambas
entendidas como Magia.
A Magia sempre foi entendida como uma interferência na ordem
natural das coisas, uma ingerência, obtida por meio de palavras,
gestos, objetos, oferendas, estando sempre relacionada com
o sobrenatural. São das concepções mágicas do mundo que brotam
as religiões. Aqueles que com ela se envolviam, por aprendizado
ou por dom inato, sempre gozaram de um certo status social. Uma
lacuna quase sempre preenchida pelas mulheres que, desde sempre, são
mais identificadas com o sobrenatural.
O exemplo que nos chega do que seriam estas personalidades femininas
são as parteiras e as benzedeiras, ainda tão presentes na vida de muitos
brasileiros que vivem longe dos grandes centros e que, recuando-se
poucos anos (40 no máximo), podemos identificá-las mesmo dentro de
nossas famílias (minhas duas avós, tanto materna quanto paterna,
eram parteiras e benzedeiras).
Estas mulheres estavam portando plenamente integradas ao grupo
social. Não que estas relações fossem sempre pacíficas, muito pelo
contrário; em épocas em que a mortalidade infantil era assustadora,
a figura da parteira tendia a oscilar entre salvadora e carrasca.
Convém nos lembrarmos também que neste mesmo extrato social
ainda se inseriam os desviados, os doidos, os desajustados e tantos outros,
todos vistos, de uma maneira ou de outra, envolvidos com o sobrenatural,
consequentemente, com a Magia, sendo ela mesma, já habitada por
outros tantos mitos e crendices. Aqui temos outro elemento que,
invadindo o plano real, irá marcar profundamente a figura das bruxas:
os Mitos.
Na Roma antiga existiam as Strix (origem da palavra italiana strega = bruxa);
eram mulheres que, em certas noites, transformavam-se em corujas e
procuravam crianças para sugar-lhes o sangue. Monstros similares eram as
"stringlas" gregas. As germânicas "streghe" podem estar neste mesmo caldeirão.
A Grécia, em especial, é particularmente rica em mitos de monstros
femininos que facilmente se associam a bruxas. Em sua vasta
mitologia encontramos Atena, deusa da Sabedoria, cuja ave
preferida é a coruja e que leva ninfas para um revigorante voo
noturno sob o luar. A vingativa Lâmia, que, tendo perdido
seus filhos, vinga-se sugando o sangue de crianças. Medeia e seus muitos
feitiços, capazes até de devolver a juventude ao já velho Esão, pai de
Jasão. Circe, que transforma a tripulação de Odisseu (Ulisses) em porcos.
As tessalianas, que podiam assumir a forma de qualquer animal.
As Sibilas, e muitas outras.
Assim colocados, lado a lado, pessoas reais e entes míticos, pode parecer
estranho, porém é necessário um esforço de nossa parte em tentar entender
que, em um mundo complexo, porém pouco compreendido como o
antigo, bem como o medieval, todos estes elementos inevitavelmente
se promiscuiriam, gerando um amálgama onde todas as partes envolvidas
seriam chamadas de feiticeiras, magas, catimbozeiras, parteiras, curandeiras,
benzedeiras e muitos outros nomes que, à época, tinham significados
similares: bruxas, deixando claro que a fronteira entre o imaginário e o
real era muito mais tênue do que podemos supor.
Vemos assim, que em praticamente todas as sociedades pré-medievais a
figura feminina, com maior ou menor intensidade devido à sua capacidade
de gerar vida e sua condição de "sexo-frágil", sempre foi relegada
à casa e aos filhos, associando-se ao bem-estar. Por outro lado, também
eram capazes de terríveis vinganças e sórdidas maquinações.
Hécate, deusa grega da bruxaria, que vagava pelas noites, sendo vista
somente pelos cães que ladravam à sua passagem, às vezes aparecia
associada à deusa Diana (Ártemis), a Lua. Na Idade Média os dois
mitos praticamente se fundiram.
A Bruxa Primordial
A bruxa primeva é, portanto, o resultado mágico da fusão da mulher sábia,
aquela que auxiliava no parto e cuidava das enfermidades, dos vitimados
pelo sobrenatural, os desajustes mentais e sociais e dos muitos monstros
sugadores de sangue que povoavam o imaginário popular, estando
inequivocamente ligada a elementos naturais, a um saber ligado à terra,
aos seus ciclos e aos seus muitos deuses; em especial os da fertilidade,
em suma, Pagã. Um ser que vivia na tênue fronteira entre o real e o
imaginário. Uma figura complexa. E ambígua.
Essa ambiguidade, tão presente (a mesma erva que cura pode
também matar) foi uma constante; e neste ponto não se restringe
apenas à questão de gênero nem de época, sendo o médico de
hoje tão vítima desta desconfiança quanto a bruxa de outrora. Esta desconfiança,
disfarçada,
mas nunca superada, contribuiu para a existência de um convívio no
meio social, no mínimo, delicado.
Situação facilmente estendida para todas as mulheres que, com seus
humores e sangramentos, sempre esteve envolta pelo manto do sobrenatural.
A distinção social dada à bruxa e a seus saberes tipicamente femininos
reflete, em certa medida, a distinção dada à própria mulher. Seria fácil,
portanto, nestas sociedades, supor o papel da mulher laureado de um certo
prestígio, ainda que mínimo. Afinal, acima de tudo estava a figura da mulher
como mãe; ela, enquanto geradora de vida, assumia maior importância até do
que o seu fruto, o filho.
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Contexto
Na Idade Média isso mudou. Para pior.
Neste ponto é necessário se fazer uma pequena
introdução sobre os muitos povos, diferentes entre si,
que habitam a Europa neste período.
A Idade Média se inicia; segundo alguns
defendem, com a queda do Imperador
Augústulo (algo como Augustinho) em 476 d.C -
indo terminar com a queda de Constantinopla
(1453 d.C.). A condenação ao exílio deste trêmulo
rapazola, que recentemente perdera o pai, Orestes, marca
a queda do Império Romano do Ocidente e o fim da Antiguidade.
Data meramente ilustrativa, uma vez que a agonia do Império
Romano foi um processo longo e seus ecos persistiram por muito tempo.
O fato é que o desmoronamento da bem azeitada máquina
administrativa romana - da qual a Igreja é a herdeira direta - lançou
todo o continente, sua maior parte pelo menos, em um confuso
desmantelo. É no bojo deste efervescente caldeirão de raças e credos,
em meio a estes povos em franco processo de aculturação, que
aqui, para efeito de simplificação, iremos reduzir para duas correntes
principais: Os "Romanos", aqueles que estavam integrados no moribundo
Império, sendo ou não 100% romanos. E os "Germanos", todos os povos
que, pressionados pelos hunos, por outros povos, pela escassez de
terras cultiváveis ou ainda pela própria fragilidade do Império
Romano, desceram das frias terras do norte, avançando pelas
praticamente inexistentes fronteiras romanas.
Todos estes povos tinham suas bruxas, e viam a mulher sob
óticas diferentes. Ainda mais interessante é dizer que as próprias
mulheres se viam de forma diferente. Foi neste ambiente, em que
todos influenciavam e eram influenciados, nos séculos em que se
fomentou a formação das futuras nações que se consolidaram
na Idade Moderna, é que assistimos o cristianismo (aquele nascido
no Concílio de Niceia (325 d.C.), tornado de Estado no Édito da
Tessalônica (380 d.C.) e reforçado nos outros muitos concílios que se seguiram)
se tornar uma Instituição e ganhar corpo. Força. Poder.
É no confronto direto com esta "nova" religião que
o mito da bruxa ganhará os contornos que hoje vemos e em paralelo,
assistiremos o delinear de uma nova posição a ser ocupada pela mulher,
pois, no seu processo de "formatação", a religião criada em nome
do Cristo afasta, paulatinamente, as mulheres dos seus nichos de poder,
assumindo, em definitivo, seu aspecto Patriarcal. Justo a religião que,
em seus primórdios, galgou importantes degraus apoiada por mulheres
(vide a mãe e a esposa de Constantino).
É na institucionalização do Cristianismo que a mulher perde sua projeção
inicial, relegada a um papel subalterno na Igreja que nascia. Uma nova
realidade era escrita, não sem conflitos, arbitrariedades, sangue e Fé Verdadeira.
Uma realidade regida por um Deus Único. Nas famigeradas "Três Ordens" (séc. XI)
os que oram ocupam o topo da tríade.
Um dos passos mais importantes dados pela Igreja no sentido de
exercer controle sobre seus seguidores foi dado no
Concílio de Latrão (também chamado Latrão IV), convocado pelo
então papa Inocêncio III, em 1215. Onde, dentre muitas outras
resoluções, estabeleceu-se a obrigatoriedade da Confissão.
Todo Cristão, a partir dos sete anos, ficava obrigado a se confessar
com um sacerdote pelo menos uma vez por ano, correndo o risco
de excomunhão se não o fizesse. Neste concílio também é recomendado
aos padres uma atenção especial às heresias, estimulando o
interrogatório em casos de suspeitas e, caso ficasse comprovado
o desvio, a punição (lembremos que à mesma época existia a perseguição
aos Cátaros).
Nessa nova realidade que surgia era o Filho, não mais a Mãe, a figura de
maior importância. Mesmo que haja, principalmente após as Cruzadas
(séc. XI a XIII), uma certa redescoberta do feminino cristão, na figura
de Maria, a relação de primazia estava irremediavelmente comprometida.
E aquele saber das bruxas, desde há muito associado a deuses
muitos, será marcado indelevelmente pela chegada do Deus Único.
Apoiado nestes pressupostos é inegável que a Idade Média irá assistir a
um reescrever do papel da mulher na sociedade, coisa que já vinha
sendo delineada, mas que naquele momento ganha novos e fortes
contornos. A mulher do cristianismo não é a mesma das religiões pagãs.
Não diria nem melhor nem pior, só diferente. No período medieval estas
mulheres se chocarão. O imaginário popular da época irá opor, bem ao
gosto da época, duas
figuras diametralmente opostas: a bruxa e a santa.
Uma, no sentido espiritual, tocada pelo Divino e a outra, no sentido
mais carnal, tocada pelo Profano. A sexualidade feminina será
o principal campo de batalha destas novas concepções. Não creio
ser necessário dizer qual o nome reservado para as mulheres das
religiões pagãs.
O Sexo, tão comum e natural nas religiões primitivas, torna-se, no
decorrer dos séculos, a ruína dos homens. A leitura dos livros que
compunham a Bíblia (aqui me refiro aos canônicos), uma das
muitas possíveis, em que se constata que o Cristo, em não sendo casado,
morreu puro, cria uma ideia, gestada nos mosteiros e disseminada por
todos os cantos, que a demôniosos primórdios, que opunha Bem e
Mal em uma disputa incansável, vemos o surgimento de outras frentes
de batalha. Contra os infiéis que, ignorantes do Cristo, mereciam esforços
para a salvação; contra aqueles que professavam outros entendimentos do
mesmo Cristo; contra aqueles que abandonavam as fileiras da Igreja, e agora
contra o desejo e a volúpia, que minavam a vontade dos homens, abriam
espaço para o pecado.
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A Posição da Igreja
Para a Igreja, porém,
a luta era uma só, e louvável:
a defesa da Fé, o que significava
a salvação da alma, algo que, visto
no contexto medieval, valia todos
os esforços. Para muitos, ainda
hoje vale. Uma guerra de
muitos frontes e de perdas
consideráveis, calorosamente
travada nos muitos séculos da Idade
Média, uma contenda que
tratava tanto a maledicência e o
malefício, que, claro, existiam, quanto às protociências que despontavam
como sendo puro Mal. Tudo em nome do Dogma que, em última análise,
é tão somente uma Opinião. Todos perderam, mas principalmente as
mulheres, que assistiram, não passivas, mas incapacitadas, um
lento remodelar da sua relevância social.
Relacionar a mulher com o pecado não era novidade - Eva estava
lá desde os primórdios para comprovar a verdade inegável do fato -
porém, este é só um dos aspectos que irão. compor o arquétipo da
Bruxa que nos chega nos dias de hoje. A da bela e sensual jovem,
caminho da perdição. No outro extremo desta composição está a
decrépita e medonha anciã, aquela que tem um narigão e uma ruga
quase tão grande quanto ele.
A madrasta da Branca de Neve, da adaptação para o cinema de
Walt Disney, é um exemplo magnífico por representar, no mesmo
personagem os dois extremos; antes dos filmes da Disney as ilustrações
dos contos dos irmãos Grimm se encarregaram de fornecer o arquétipo
de como seria uma bruxa velha. O caldeirão e a vassoura são outros
elementos associados a elas.
Notar que, em sua maioria, são elementos do cotidiano feminino,
comuns na sua labuta de esteio familiar, que assumem novas
conotações. O objeto onde se cozinha é o mesmo onde se
fundem poções maléficas; a ferramenta de limpeza se torna o meio
de transporte mágico; assim por diante. Nestes elementos, porém,
uma outra leitura é possível, mais sombria, mas necessária; é no seio
do cotidiano, na rotina do dia a dia, no envenenar da comida,
no cozinhar do cachorro preferido e servir como sopa que a vingança
feminina se manifesta.
Novamente notamos a dubiedade do mito, sempre calcado em
um delicado equilíbrio que, na Idade Média, será definitivamente
quebrado com o surgimento de uma nova figura, fundamental
para se buscar uma visão aproximada do que foi a bruxaria medieval: O Diabo.
Demônios dos mais diferentes tipos povoaram o imaginário
medieval, vindos das tradições cristãs: como Asmodeu, Baal ou
Belzebu, Beemot, Lúcifer, entre outros; ou importados de outras
crenças, como o Pã grego, os Sátiros romanos, o mesopotâmico
Pazuzu.
Na Idade Média, o Diabo estava em todos os lugares e as mulheres,
comprovadamente fracas na Fé, eram o seu quintal.
Ardiloso, capaz de mudar de forma, apresentava-se como Súcubbus
(aquela que fica por baixo), para seduzir os homens e Incubbus
(aquele que fica por cima), para quem as mulheres se entregavam.
Notar a sutileza em dizer que as mulheres se "entregavam" e que
os homens eram "seduzidos". As atividades do Diabo, porém,
seriam vistas com um certo desdém até meados do século XIV, é
comum o entendimento dele não como adversário, mas sim como
um empecilho. Até meados do século XI, a bruxaria também será
vista, pela Igreja, com olhos mais complacentes, algo pitoresco,
integrado à concepção popularesca do Cristianismo.
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